
Bebês reborn fabricadas por artesã em Goiás — Foto: Weimer Carvalho/O Popular
Apesar de existirem há décadas, os bebês reborn voltaram aos holofotes após influenciadoras digitais viralizarem com vídeos em que interagem com suas coleções como se fossem filhos reais.
O fenômeno, no entanto, extrapolou o universo do entretenimento. A popularização dos reborns já motivou ações judiciais, projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional e até discussões sobre limites legais no uso da imagem de mães e crianças em redes sociais.
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Um hobby ou uma fuga da realidade?
O debate central gira em torno de uma questão sensível: até que ponto a relação com os bebês reborn é um passatempo inofensivo — e até terapêutico — e quando ela pode indicar algum tipo de desequilíbrio emocional ou transtorno mental?
Para a psicóloga clínica Larissa Fonseca, é preciso cautela antes de patologizar esse tipo de comportamento. “Atividades lúdicas, como brincar de boneca, ativam áreas do cérebro ligadas à criatividade, ao prazer e ao relaxamento. A vida adulta pode sim ter pausas lúdicas, desde que isso não se transforme em uma fuga permanente da realidade”, explica.
Já a psicanalista Fabiana Guntovitch observa que, em muitos casos, o uso dos bebês reborn pode representar um processo de elaboração psíquica. “Há pessoas que usam esses bonecos como uma forma de acessar memórias, curar traumas ou lidar com perdas. É uma prática simbólica que pode ser profundamente significativa, especialmente se acompanhada por suporte psicoterapêutico”, afirma.
Ela cita o caso de uma senhora com Alzheimer que utiliza um boneco reborn como recurso terapêutico. “Esse objeto pode acalmá-la e ajudá-la a reviver lembranças de quando era mãe de bebês, promovendo conforto e bem-estar emocional”, completa.
Entretanto, Guntovitch e Fonseca são unânimes ao alertar que esses objetos não substituem o acompanhamento psicológico. “É fundamental compreender o contexto. O uso terapêutico pode ser válido, mas é importante que ele seja pontual e monitorado por profissionais da saúde mental”, ressalta Fonseca.

Cegonhas contam as melhores dicas de como começar no ramo dos bebês reborn e ganhar dinheiro com a febre das bonecas (Foto: Divulgação/Júlia Brandão)
A polêmica social e os estigmas de gênero
Mas se a prática é, em muitos casos, inofensiva ou até benéfica, por que causa tanto estranhamento? Para especialistas, a explicação pode estar no imaginário coletivo e nos papéis de gênero impostos pela sociedade.
“A sociedade tolera melhor que adultos brinquem quando isso se encaixa em padrões socialmente aceitos. Homens que jogam videogame, por exemplo, dificilmente são questionados. Já uma mulher adulta brincando com bonecas, mesmo que de forma consciente, ainda é motivo de críticas”, analisa Guntovitch.
Esse julgamento, segundo ela, é agravado pela ideia de que o tempo da mulher deve ser sempre dedicado ao outro — filhos, família, trabalho. “Quando uma mulher decide brincar por ela mesma, para seu próprio prazer ou terapia, isso gera desconforto social, pois rompe com esse ideal de abnegação feminina.”
Quando o hobby se torna um alerta?
Para diferenciar um hobby saudável de um possível transtorno, psicólogos e psiquiatras indicam que o principal critério é o grau de prejuízo causado à rotina da pessoa. A psiquiatra Dra. Maria Eduarda Ribeiro, consultada pela reportagem, explica:
“Um comportamento se torna patológico quando interfere negativamente na vida funcional do indivíduo — seja no trabalho, nas relações interpessoais, no autocuidado ou no bem-estar emocional.”
Ela alerta para sinais como isolamento social, sofrimento intenso na ausência do objeto, ou quando a pessoa substitui todas as interações emocionais pelo vínculo com o boneco. “Nesses casos, é recomendável buscar avaliação profissional para descartar condições como depressão, transtornos dissociativos ou até transtornos de apego”, pontua.
Aspectos legais e o uso da imagem
O fenômeno também começou a esbarrar em questões jurídicas. A advogada e professora de Direito Civil Dra. Cláudia Almeida explica que, embora colecionar bonecos não seja ilegal, o uso indevido da imagem de crianças reais — ou a simulação de maternidade para fins de monetização — pode levantar discussões legais delicadas.
“Se uma influenciadora cria conteúdo em que representa juridicamente um bebê reborn como um filho, sem deixar claro que se trata de um boneco, pode induzir o público ao erro. Isso pode configurar publicidade enganosa ou até violar direitos de imagem, dependendo do contexto”, afirma a jurista.
Ela ainda destaca que já tramitam no Congresso projetos de lei que propõem limitar ou regulamentar a exposição de conteúdos que envolvem maternidade e infância nas redes sociais. “É um terreno novo e controverso, mas o marco jurídico caminha no sentido de proteger tanto o público quanto os criadores de conteúdo”, completa.
Olhar atento
O universo dos bebês reborn escancara as contradições da sociedade contemporânea: de um lado, a busca por conforto emocional e elaboração de traumas; de outro, os estigmas que ainda cercam o ato de brincar na vida adulta, especialmente entre as mulheres.
Ao mesmo tempo, a popularização desse hobby exige um olhar atento, tanto do ponto de vista da saúde mental quanto das responsabilidades legais. O que para alguns pode ser apenas um passatempo terapêutico, para outros pode representar um alerta. A fronteira entre o saudável e o problemático, como apontam os especialistas, está na intenção, na frequência e, principalmente, no impacto que isso gera na vida real de quem brinca.