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Sete anos após morte no ostracismo, a soprano brasileira Maria D’Apparecida é homenageada em Paris

A brasileira Maria d’Apparecida, que ficou conhecida por interpretar a personagem Carmen, de Bizet, na Ópera de Paris, recebe homenagem tardia na capital francesa. Uma placa em sua memória foi inaugurada neste sábado (28) diante do prédio onde a estrela da música lírica nos anos 1960 viveu.


Há dois anos, a morte solitária em Paris da mezzo soprano brasileira Maria d’Apparecida chamou a atenção de parte do mundo musical. Para alguns, era a primeira vez que se ouvia falar naquele nome. Com quase 92 anos, a cantora, que não se apresentava há pelo menos 15 anos, morreu sozinha e esquecida no dia 4 de julho de 2017. Seu corpo só foi descoberto por vizinhos dias após a morte. Encaminhado ao IML, estava prestes a ser enterrado como indigente, até que, pela mobilização de conhecidos e admiradores, acionou-se a embaixada brasileira e Maria d’Apparecida foi finalmente sepultada, mais de dois meses após sua morte.

A soprano terminou seus dias sozinha na capital francesa, onde fez carreira e conquistou a fama.

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Placa em homenagem à Maria d’Apparecida foi inaugurada diante de alguns admiradores na fachada do prédio onde  ela vivia – Foto: Mazé Torquato Chotil/Arquivo Pessoal

A placa foi inaugurada diante de um pequeno grupo de admiradores na fachada do prédio do 19, rue Auguste Vacquerie, no 16° distrito de Paris, perto do Arco do Triunfo. A homenagem foi uma iniciativa de uma associação criada após sua morte.

A soprano terminou seus dias sozinha na capital francesa, onde fez carreira e conquistou a fama. A carioca foi encontrada sem vida em seu apartamento em julho de 2017 e, como não tinha família na França, só foi sepultada dois meses após sua morte. Na época, sua morte chocou os brasileiros que vivem na França.

Desde então, algumas iniciativas foram lançadas para celebrar sua carreira. A primeira delas foi a criação da associação Les amis de Maria d’Apparecida/Os amigos de Maria d’Apparecida, fundada para preservar sua memória. “Ela caiu no esquecimento e é conhecida apenas no meio musical”, disse Maria Luisa Souto Maior quando, em 2018, junto com um grupo de conhecidos e admiradores da cantora, lançou a associação.

Negra, filha de empregada doméstica e discriminada no Brasil

A história dessa filha de uma empregada doméstica, fruto de uma relação com o filho da patroa e criada por uma família que a educou nos melhores colégios do Rio de Janeiro, também se tornou um livro, lançado em 2019. Em Maria d’Apparecida – Une Maria pas comme les autres, a escritora Mazé Torquato Chotil conta a trajetória da brasileira que deixou o Brasil após uma passagem frustrada pelo conservatório carioca que, nos anos 1950, não estava pronto para acolher uma cantora lírica negra.

O livro, publicado também em português com o título Maria d’Apparecida – negraluminosa voz (editora Alameda), relata a saga de uma artista que fez grandes papéis em óperas europeias antes de se tornar cantora popular, se apresentando na televisão francesa ou ao lado de nomes como Baden Powell.

A mezzo soprano retratada por Félix Labisse – Foto: Reprodução

Final triste

Foi, de fato, um final triste para a primeira brasileira negra a consagrar-se como protagonista da ópera Carmen na Ópera de Paris. Filha de uma empregada doméstica engravidada pelo filho do patrão, a carioca Maria d’Apparecida foi criada no Rio de Janeiro por uma família que a educou junto com os seus filhos, embora nunca tenha sido adotada oficialmente. Teve aulas de francês e piano e cursou o Conservatório Brasileiro de Música. Ao vencer um concurso promovido pela Associação Brasileira de Imprensa, tentou iniciar carreira no canto.

Em entrevista a Lauro Gomes na Rádio MEC (veja abaixo), ela contou: “Quando eu quis fazer carreira lírica no Brasil um ítalo-brasileiro me disse: ‘Maria d’Apparecida, você tem uma bela voz, mas você é negra. E negra não canta no Theatro Municipal’. Aquilo pra mim foi uma tal pedrada… Eu tive que abandonar pátria e família, não foi fácil”.

Maria d’Apparecida teria primeiro que se consagrar na Europa, causando enorme impacto no papel de Carmen, na década de 1960, para só então estrear no Municipal carioca, em 20 de agosto de 1965. O início da carreira europeia, no entanto, se deu com a canção de câmara brasileira. Ela partiu com o compositor Waldemar Henrique para tentar a sorte no velho continente em 1959 e, juntos, apresentaram-se em Portugal, Madri e Paris, onde gravaram um disco – o primeiro dos mais de 20 que ela faria.

Um exemplo de seu repertório pode ser conferido no programa (disponibilizado online pelo Instituto Piano Brasileiro) de um recital que ela deu no Rio de Janeiro em 1972, acompanhada ao piano por Hermelindo Castello Branco, e no qual constam canções de Villa-Lobos, Waldemar Henrique, Mignone e Almeida Prado, além de árias das Bodas de FigaroContos de HoffmannWest side story e, claro, Carmen.

O recital aconteceu dois anos antes de um desastre que teria consequências definitivas. No Natal de 1974, ela sofreu um acidente de carro grave, do qual levaria três anos para se recuperar. Voltou ao canto lírico, mas não era mais capaz de cantar uma ópera inteira, e acabou enveredando pela música popular: o disco “Maria d’Apparecida chante Baden Powell”, de 1977, marcou a virada na carreira e foi recebido com bastante sucesso. À época do lançamento, Carlos Drummond de Andrade publicou um texto no jornal dando notícias da artista e da retomada de sua carreira. Ao final, dedicou “para Maria d’Apparecida, este quase poema resultante de uma admiração afetuosa”, cujos versos finais dizem: “Tua voz, d’Apparecida, é aparição / fulgurante, sensitiva, dramática / e vem do fundo nigroluminoso de nossos corações / e vai, e volta e vai, / Maria d’Apparecida do Brasil, /aparecedoramente cantaril”.

O poema de Drummond não foi a única obra que a cantora inspirou: Maria d’Apparecida foi musa do pintor surrealista Félix Labisse (1905-1982), com quem teve um longo romance e que a retratou em ao menos 15 telas.

Essa história impressionante de glória e esquecimento lembra a de outra cantora negra brasileira, Lapinha – Joaquina Maria da Conceição Lapa – que, em pleno final do século XVIII e início do XIX, alcançou sucesso tal que a levou a uma longa excursão pela Europa. O viajante sueco Carl Ruders (1761-1837), que a viu cantar em Lisboa, anotou: “Joaquina Lapinha é natural do Brasil e filha de uma mulata, por cujo motivo tem a pele bastante escura. Este inconveniente, porém, remedeia-se com cosméticos. Fora disso, tem uma figura imponente, boa voz e muito sentimento dramático”. Apesar do sucesso, não se conhece sequer um retrato de Lapinha, e não se sabe sua data de nascimento nem de morte – ao que parece, quando deixou os palcos tornou-se invisível.

Se as histórias se aproximam, os tempos são outros e felizmente há pessoas empenhadas em não deixar a trajetória de Maria d’Apparecida se apagar. Uma delas é a escritora Mazé Torquato Chotil, que acaba de lançar, na França, Maria d’Apparecida – Une Maria pas comme les autres. Brasileira radicada em Paris, Mazé doou os direitos autorais resultantes da biografia (que deve ser lançada no Brasil em 2020) para a associação “Les amis de Maria d’Apparecida” (Os amigos de Maria d’Apparecida) organizada após a sua morte com o intuito de preservar seu legado. A organização montou um website  no qual se pode recuperar várias informações da artista como fotos, discografia e matérias de jornal.

Há mais de uma versão de Maria d’Apparecida para Tamba-Tajá, clássico de Waldemar Henrique. Uma, em arranjo orquestral, me pareceu especialmente preciosa. Realizada em 13 de abril de 1960, para a TV francesa, mostra uma interpretação feita de economia de meios, precisão técnica, dicção límpida e um canto que encontra um ponto de equilíbrio elegante entre o despojamento popular e a impostação lírica.

Com agências