A recente intervenção da primeira-dama Rosângela Lula da Silva, a Janja, durante o encontro entre o presidente Lula e o presidente chinês Xi Jinping, reacendeu o debate sobre os limites do papel institucional da primeira-dama e os riscos de misturar ativismo com diplomacia de Estado.
Janja, ao comentar os “abusos cometidos pelo TikTok”, tomou a palavra em uma reunião de alto nível entre chefes de Estado — um espaço que tradicionalmente exige preparo técnico, cautela diplomática e respeito aos protocolos internacionais. Embora a pauta que ela defende — a proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital — seja legítima e urgente, o contexto de sua manifestação foi profundamente inadequado.
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Não há dúvida de que redes sociais, como o TikTok, precisam de regulamentações e fiscalização para evitar abusos. No entanto, levar essa discussão diretamente ao presidente de uma potência como a China, em uma reunião fechada e protocolar, soa, no mínimo, imprudente. Em vez de construir pontes diplomáticas com interlocutores estratégicos, o gesto pode ser interpretado como acusação e ingerência — comprometendo a imagem do Brasil e o próprio andamento de futuras tratativas comerciais ou tecnológicas com o país asiático.

“Não há protocolo que a impeça de falar”, Janja da Silva – Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Ao afirmar que “não há protocolo” que a impeça de falar, Janja ignora que há, sim, formas, instâncias e representantes oficialmente designados para tratar de temas tão sensíveis. O Itamaraty, os ministérios da Justiça e dos Direitos Humanos, e até comissões do Congresso, são os espaços adequados para esse tipo de interlocução. Usurpar esse papel, ainda que com a anuência do presidente, transmite ao mundo uma imagem de amadorismo institucional.
O uso de exemplos emocionais, como o de uma menina que morreu após cheirar desodorante, sem apresentar dados técnicos que vinculem diretamente a rede social ao ocorrido, reforça uma retórica alarmista e pouco embasada. Pautas sérias merecem ser conduzidas com responsabilidade, base legal e diagnóstico preciso. Caso contrário, o debate público corre o risco de se transformar em palanque para discursos populistas, que mais obscurecem do que esclarecem.
A tentativa de Janja de se blindar da crítica institucional, ao qualificar o episódio como “fofoca de bastidor” e se colocar como vítima de misoginia ou silenciamento, enfraquece o debate. Quando se ocupa, mesmo que informalmente, um espaço de poder, é necessário compreender que críticas fazem parte da responsabilidade pública — especialmente quando se ultrapassam limites formais de atuação.
O Brasil precisa, sim, discutir urgentemente a regulamentação das plataformas digitais. Mas isso deve ocorrer com seriedade, sob o crivo de especialistas, do Congresso Nacional e da sociedade civil — não como consequência de improvisos diplomáticos em jantares de Estado.
A defesa da infância e da juventude exige mais que indignação. Exige método, articulação e, acima de tudo, respeito às instituições. Diplomacia não é lugar para palanques. E palanque não é lugar para improvisação diplomática.
Diplomacia não é Palanque
1. Falta de preparo diplomático e quebra de protocolo
Embora Janja afirme que “não há protocolo” que a impeça de se manifestar, a diplomacia internacional segue normas estritas, especialmente em encontros bilaterais de alto nível com chefes de Estado como o presidente da China.
Tomar a palavra sem uma previsão formal em reuniões diplomáticas pode ser interpretado como quebra de protocolo, falta de preparo institucional e até mesmo desrespeito ao anfitrião ou ao papel dos diplomatas e ministros presentes.
Além disso, isso pode comprometer a imagem do Brasil diante de uma potência como a China.
2. Confusão entre papel institucional e pessoal
Janja é primeira-dama, e embora tenha direito à opinião e à militância, não ocupa cargo eletivo nem técnico. Ao se posicionar oficialmente em um encontro diplomático, mesmo com a anuência de Lula, mistura funções pessoais com atribuições de Estado.
Isso gera dúvidas sobre os limites do seu poder de fala e decisão dentro do governo, o que pode minar a autoridade de ministros e enfraquecer a institucionalidade.
3. Generalização e discurso emocional
Embora o tema da proteção de crianças e adolescentes seja legítimo e urgente, Janja o apresenta de forma emocional e pouco técnica, sem dados ou referências específicas que sustentem a gravidade do problema em relação ao TikTok no Brasil.
Exemplos como o de uma menina que inalou desodorante, embora comoventes, carecem de contextualização e embasamento técnico, e podem ser usados de forma alarmista para justificar medidas complexas como a regulamentação de redes sociais.
4. Risco de tensão diplomática e censura
Apontar “abusos cometidos pelo TikTok” diretamente ao presidente da China — país de origem da empresa — é um movimento diplomático delicado e potencialmente ofensivo.
Isso pode ser interpretado como ingerência em assuntos internos de uma empresa estrangeira, além de alimentar narrativas autoritárias e de censura, especialmente quando se defende a regulamentação da internet de forma genérica e sem debate técnico transparente.
5. Desvio do foco e reação defensiva
Ao se colocar como vítima de uma “fofoca de bastidor”, Janja personaliza uma crítica institucional, desviando o foco da real questão: a impropriedade de sua intervenção em um encontro diplomático reservado.
Esse tipo de reação polariza o debate e reduz a possibilidade de reflexão crítica e construtiva sobre o papel da primeira-dama e sobre os mecanismos adequados de defesa de direitos digitais.
Conclusão
Embora a intenção de Janja — proteger crianças e adolescentes — seja louvável, a forma, o local e o contexto escolhidos para sua manifestação foram equivocados, comprometendo a diplomacia brasileira e confundindo os papéis institucionais dentro do governo. A causa merece ser tratada com rigor técnico, articulação institucional e respeito aos protocolos, e não por impulsos pessoais, ainda que bem intencionados.