
Novas mensagens de Tagliaferro levantam suspeitas sobre interferência de Alexandre de Moraes na segurança pública de SP. (Foto: Rosinei Coutinho/STF)
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), tem negado pedidos de intimação de testemunhas indicadas pelas defesas dos réus envolvidos no 8 de janeiro. A decisão contraria garantias processuais básicas, como o direito à ampla defesa.
Moraes, que é relator dos casos, tem apenas intimado as testemunhas de acusação, indicadas pelo Ministério Público, as quais são obrigadas a comparecer em dia e hora marcados. Já os advogados de defesa dos réus devem localizar, por conta própria, suas testemunhas e convencê-las a comparecer voluntariamente, estabelecendo um tratamento desigual entre acusação e defesa.
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“Um advogado, muitas vezes, nem conhece a testemunha. Ele sabe de uma pessoa que tem algo a dizer, que possa ser relevante para o seu cliente no contexto da produção da prova, e a arrola [indica ao juiz] como testemunha. O que não significa que ele tenha um contato direto ou proximidade com essa pessoa”, diz Rodrigo Chemin, doutor em Direito e professor de Direito Processual Penal.
Ação contraria princípios do contraditório e da ampla defesa, garantidos pela Constituição
André Pontarolli, mestre em Direito e professor de Direito Penal e Criminologia, explica que a decisão do ministro Alexandre de Moraes afronta princípios constitucionais do devido processo legal. “O contraditório exige a paridade de armas entre acusação e defesa, sendo que cada parte deve ter as mesmas oportunidades probatórias. A acusação não pode ser beneficiada com a força coercitiva do aparato estatal para assegurar sua prova, enquanto se impõe à defesa a responsabilidade de conduzir testemunhas, muitas vezes autoridades, sob o risco de comprometimento da prova essencial à sua tese”, defende o jurista.
A Associação Nacional da Advocacia Criminal (Anacrim) também criticou a medida ao apresentar, no último dia 15, uma nota de repúdio sobre a situação. “A decisão — que ignora o evidente desequilíbrio estrutural entre defesa e acusação, esta última munida de aparato estatal — representa um esvaziamento do papel garantidor do juízo criminal na produção probatória e impõe à defesa um ônus desproporcional, colocando-a em situação de clara desvantagem frente ao Estado-acusador”, afirma a nota.
Moraes justificou decisão baseado no Código de Processo Civil
Para embasar sua decisão, o ministro Alexandre de Moraes recorreu ao artigo 455 do Código de Processo Civil (CPC), que estabelece que a intimação de testemunhas pode ser feita diretamente pelo advogado, sem necessidade de intervenção do juiz. No entanto, o artigo 396-A do Código de Processo Penal (CPP) é claro ao assegurar à defesa o direito de requerer a intimação judicial de testemunhas, quando necessário.
A Anacrim também chamou a atenção para o risco de generalização da prática. A entidade advertiu o possível “efeito cascata”, que, segundo a instituição, “pode produzir nos demais órgãos do Poder Judiciário, notadamente em juízos de primeiro grau e tribunais estaduais e federais, normalizando uma prática que desfigura o modelo acusatório e fomenta perigosamente o processo penal de um sistema inquisitório”.
A situação se agrava no caso dos réus do 8 de janeiro, por estarem sendo julgados diretamente pelo Supremo Tribunal Federal. Embora exista a possibilidade de recorrer ou de solicitar nulidades, os recursos são analisados pela própria Corte, o que dificulta significativamente a revisão de decisões que restrinjam o direito de defesa.
Desentendimento diplomático com a Espanha – Julgando com o fígado
Que Alexandre de Moraes não gosta de ver suas decisões contestadas é um fato inegável. Da censura aos que o criticam à investigação ordenada contra um juiz que deu ganho de causa e determinou indenização ao ex-deputado estadual paranaense Homero Marchese, censurado por uma publicação que não fez, as ações do ministro apenas confirmam o “quando ele cisma, é uma tragédia”, dito pelo juiz instrutor Airton Vieira (então lotado no gabinete de Moraes no STF) ao então perito do TSE Eduardo Tagliaferro. Agora, a cisma do ministro pode levar a um desentendimento diplomático com a Espanha.
Na segunda-feira, dia 14, a Justiça espanhola, atendendo a uma recomendação do Ministério Público do país, negou por unanimidade o pedido feito pelo Brasil para extraditar o jornalista Oswaldo Eustáquio, que teve sua prisão determinada por Moraes em 2022 dentro do inquérito dos “atos antidemocráticos”, um dos filhotes do abusivo inquérito das “fake news”.
Em 2024, Eustáquio foi alvo de um novo mandado de prisão por suposta corrupção de menores, já que ele estaria usando as contas da filha adolescente nas mídias sociais para seguir manifestando sua opinião. A Audiência Nacional – um tribunal que tem jurisdição sobre toda a Espanha – considerou que a conduta do jornalista tinha “evidente vínculo e motivação política, já que é realizada no âmbito de uma série de ações coletivas de grupos que apoiam Bolsonaro (…) e se opõem ao atual presidente Lula da Silva”, e que os crimes imputados a ele no Brasil não passariam de crimes políticos, o que não justificaria a extradição.
“Negar a extradição de Vasil Vasilev apenas porque os espanhóis não entregaram Oswaldo Eustáquio a Moraes, como o ministro admite explicitamente em sua decisão, não é reciprocidade, mas retaliação grosseira”
A resposta de Moraes veio célere, por meio de um bloqueio de outro pedido de extradição, feito pela Espanha. Na terça-feira, dia 15, Moraes não apenas negou a entrega, às autoridades espanholas, do búlgaro Vasil Georgiev Vasilev; o ministro ainda ordenou que ele passasse para a prisão domiciliar. Como se não bastasse, Moraes ainda determinou que o embaixador espanhol em Brasília prestasse informações ao STF sobre a aplicação do princípio da reciprocidade, usado por Moraes para barrar a extradição de Vasilev – o búlgaro foi preso no Brasil em fevereiro, e é acusado pela Espanha de tráfico de drogas, tendo sido flagrado em 2022 com 52 quilos de cocaína em Barcelona, onde residia.
Negar a extradição de Vasilev apenas porque os espanhóis não entregaram Eustáquio a Moraes, como o ministro admite explicitamente em sua decisão, não é reciprocidade, mas retaliação grosseira. O tratado de extradição assinado em 1990 entre Brasil e Espanha afirma, no seu artigo 4.º, 1, “f” e “g”, que “não será concedida a extradição (…) quando a infração construir delito político ou fato conexo” e “quando o Estado requerido [no caso de Eustáquio, a Espanha] tiver fundados motivos para supor que o pedido de extradição foi apresentado com a finalidade de perseguir ou punir a pessoa reclamada por motivo de raça, religião, nacionalidade ou opiniões políticas; bem como supor que a situação da mesma seja agravada por esses motivos”.
Foi exatamente essa a avaliação do Ministério Público e da Justiça da Espanha – o mesmo artigo 4.º, item 2, ainda acrescenta que “a apreciação do caráter do crime caberá exclusivamente às autoridades do Estado requerido”. A não ser que, na cabeça de Moraes, tráfico de drogas tenha se tornado crime político, não há possibilidade alguma de invocar reciprocidade para negar a extradição de Vasilev.
Acostumado a ser adulado como um “grande defensor da democracia” – isso quando não se torna a democracia encarnada, como no caso do aeroporto de Roma –, Moraes acabou exposto pela Justiça espanhola como o que é, um perseguidor político. E sua reação foi visceral. Falar em “reciprocidade”, igualando os supostos crimes atribuídos a Eustáquio ao ato de carregar 52 quilos de droga em malas, não é argumento de quem raciocina com o cérebro, mas com o fígado. Uma falha que pode até não causar uma grave crise diplomática, mas que revela Moraes ao mundo de forma muito mais evidente que qualquer perfil em revistas norte-americanas.
Com Gazeta do Povo