Se a atmosfera no Supremo Tribunal Federal (STF) em meio ao julgamento sobre a descriminalização do porte da maconha para uso próprio já tinha espaço para rusgas, a declaração do ministro Luiz Fux de que o Brasil não tem um “governo de juízes” asseverou um clima de divisão na Corte. O pronunciamento de Fux alimentou a polêmica sobre a “autocontenção” da Corte e sua competência para decidir sobre temas que, em tese, seriam da alçada exclusiva do Legislativo – no caso da maconha, defendida por uma ala da Corte.
Na plenária desta quarta, 26, quando os ministros definiram que 40 gramas é a quantidade que separa usuário do traficante, o presidente do STF Luís Roberto Barroso abriu a sessão mandando um recado a Fux.
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Barroso defendeu a decisão da Corte: “Quem recebe os habeas corpus que envolvem as pessoas presas com drogas é o Supremo. Portanto, precisamos ter um critério que oriente a nós mesmos em que situações se deve considerar tráfico ou uso. Critérios para definir se a pessoa deve ficar presa ou não, ou seja, se vamos produzir esse impacto dramático na vida de uma pessoa ou não.”
O presidente disse que o julgamento envolve “tipicamente uma matéria para o Judiciário”. “Não há papel mais importante para o Judiciário do que ter um critério para definir se uma pessoa deve ou não ser presa”, anotou, pouco antes de o STF finalizar o julgamento sobre o porte de maconha para uso pessoal, determinando que trata-se de um ilícito, mas não um crime.
As ponderações contrastam com a avaliação do ministro Luiz Fux, que foi a voz mais enfática da ala do STF que prega que a Corte adote uma postura “minimalista” sobre temas como o porte de maconha. O ministro cobrou que “poderes com expertise” regulem o porte de maconha para uso pessoal. “Os juízes não são eleitos e, portanto, não exprimem a vontade e o sentimento constitucional do povo”, declarou.
Pelos corredores e gabinetes da Corte, há quem considere que a fala de Fux aumentou uma divisão já conhecida. De outro lado, o posicionamento do ministro também foi visto como “natural”, em linha com seus pronunciamentos recorrentes.
No caso do julgamento sobre o porte da maconha, foram formadas três correntes. A primeira defendeu a inconstitucionalidade de parte da Lei de Drogas, com a necessidade de ficar claro que o porte de maconha por usuários não é crime. A segunda, entende que a norma, por si só, já não tratou do tema como crime. E a terceira, divergente, no sentido de que a lei é constitucional e prevê o porte de maconha para uso pessoal como crime punido com penas alternativas à prisão.
A segunda ala é integrada pelos ministros Dias Toffoli e Luiz Fux. Apesar de não entenderem como crime o porte de maconha para uso pessoal, eles pendem para a corrente divergente no entendimento de que a discussão sobre o tema cabe ao Congresso e à Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
Durante o julgamento que definiu a descriminalização do porte da maconha para uso pessoal nesta terça-feira, 25, o ministro do STF Luiz Fux afirmou que o Brasil não tem um "governo de juízes". pic.twitter.com/GlAZAtDgsp
— Política Estadão (@EstadaoPolitica) June 25, 2024
A “autocontenção” é tema frequente entre os ministros e a visão de Fux acabou se alinhando não só à de alguns colegas do STF, mas também a de políticos e juristas.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou nesta quarta, 26, que o STF “não tem que se meter em tudo”. “Ele precisa pegar as coisas mais sérias, sobretudo o que diz respeito à Constituição, e virar senhora da situação, mas não pode pegar qualquer coisa e ficar discutindo, porque aí começa a criar uma rivalidade que não é boa para a democracia, a rivalidade entre quem manda, o Congresso ou a Suprema Corte”, disse Lula.
A ponderação de Fux é vista como “contraditória com a própria atuação”. É a avaliação de Rubens Glezer, professor da FGV Direito SP, um dos coordenadores do Supremo em Pauta, grupo de pesquisa sobre a Corte.
O docente lembra de decisões polêmicas de Fux, como a que suspendeu a figura do juiz de garantias e a que assegurou por quatro anos o pagamento de auxílio-moradia a magistrados.
“A ideia de que o Judiciário se contrapõe ao Legislativo, exerce controle sobre o Legislativo e o Executivo, é notória e o próprio Fux exerceu essa competência em largas medidas. Inaugurou institutos, com a possibilidade de cassar decisão monocrática de ministro enquanto estava na Presidência”, atesta Glezer.
Ele vê uma “articulação argumentativa”. “No sentido de que, se eu não quero que o STF decida nesse sentido, o acuso de estar usurpando a função do Legislativo. Se eu concordo, falo em concretização dos princípios constitucionais.”
Na avaliação do professor, o debate sobre a autocontenção da Corte máxima em tais termos é mal posto, superficial e fica sujeito a ser manipulado conforme a ocasião”.
Segundo ele, é possível pensar em limites para atuação dos ministros, mas a atividade de discutir se as normas são constitucionais ou não acaba por “atravessar a passagem” da função do Legislativo e por vezes do Executivo.
“A crítica de que o STF está usurpando o lugar do Legislativo é enganosa, superficial e empobrecedora do debate. A função do STF é, entre outras, a de controlar o arbítrio do Legislativo. O seu papel é justamente responder se a proibição para o consumo desse tipo de droga é arbitrária por parte do Estado. Essa é a função de Cortes constitucionais, no Brasil e em outros países”, assinala.
Rubens Glezer dá um exemplo insólito para ilustrar a “função” das Cortes constitucionais, como o STF. “Se o Congresso, com base em argumentos vegetarianos, criminalizasse o consumo de carne do Brasil, com pena de prisão, isso deveria ser questionado perante o STF. Mesmo havendo divergência moral e científica sobre os prejuízos ou benefícios do consumo de carne, o que estaria no cerne desse debate é se o Estado pode tirar a liberdade dos indivíduos desse jeito, com essa ferramenta penal. Nesse caso, o STF teria que avaliar se essa lei estaria dentro dos poderes ordinários do Congresso ou se seria um uso arbitrário de poder. Esse é o trabalho de uma Corte constitucional. É esse tipo de trabalho que o STF está fazendo no caso”, acredita.
O professor lembra ainda do debate sobre se o STF deveria, por exemplo, estabelecer a quantidade de gramas de droga para eventual enquadramento como tráfico. Segundo ele, essa situação é decorrente de um Congresso que “não enfrentou uma questão que deveria ser enfrentada com política pública, somente com proibição”. “Então, dada a ausência de outras ferramentas, o STF dá uma solução provisória, criando um incentivo para que o Congresso encontre uma solução melhor.”