Quando os agentes federais chegaram ao hotel em Curitiba onde estava o empresário Marco José de Oliveira, acreditavam que ele era o principal personagem por trás de um esquema que em três anos haviam movimentado R$ 1 bilhão. Sinais de riqueza não faltavam. O homem havia comprado uma casa no bairro de Santa Felicidade, na capital paranaense, avaliada em R$ 6 milhões.

O empresário Willian Agati e Emerson Menezes, o Grilo do PCC, em um churrasco em um imóvel em Florianópolis: dupla é acusada de chefiar esquema bilionário de tráfico e de lavagem de dinheiro Foto: Reprodução / Estadão
A Operação Narcobroker revirou endereços em 14 cidades de três Estados. O que os federais não esperavam é que ela fosse apenas a ponta de um esquema muito maior que envolvia a ação de mafiosos italianos e traficantes de droga do Brasil, Colômbia, Albânia e Chile, além de agentes públicos corruptos belgas, espanhóis, moçambicanos e brasileiros.
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Não só. Ela levaria às investigações que serviram de base à outra operação, a Mafiusi, deflagrada no dia 10 de dezembro de 2024, após reunir provas sobre o trânsito de toneladas de cocaína do Brasil para a Espanha e para Bélgica por meio de aviões e de navios a partir de Paranaguá (PR), o maior porto exportador de produtos agrícolas do Brasil– e o maior graneleiro da América Latina.
Os agentes descobriram ainda provas da lavagem do dinheiro do tráfico transatlântico em uma rede de negócios que envolve mais de uma dezena de ramos econômicos, mostrando que a metástase do crime organizado na economia do País atinge a venda de agrotóxicos, de bebidas, de carros luxo, de imóveis, de aeronaves bem como empresas de combustível, de ônibus, financeiras, construtoras, casas de câmbio, o comércio de ouro, jogadores de futebol e até uma igreja.

Foto: Reprodução
Todo esse emaranhado de crimes, pagamentos e de negócios girava em torno de um homem que a PF já havia investigado, sem conseguir até então reunir provas do que seria o seu verdadeiro papel no crime organizado. Ele foi retratado por Oliveira como o “concierge” da cúpula do PCC e de traficantes internacionais que operavam no Brasil: o também empresário Willian Barile Agati, cuja defesa nega as acusações.
Esses pedidos seriam dos mais diversos tipos, e iriam desde a logística para o narcotráfico e lavagem de dinheiro, até o fornecimento de aviões, veículos, imóveis, artigos de luxo e outras necessidades dos criminosos. Foi então que Oliveira fez uma das maiores revelações retratada assim pela PF nos documentos da Operação Mafiusi, revelados pelo Jornal da Band e aos quais a coluna teve acesso:
“No contexto desta oferta de ‘produtos’ e ‘serviços’ para o crime organizado é que William Barile Agati ofereceu ao colaborador uma ‘carteira de cônsul’ do Consulado da República de Moçambique, alegando que estaria montando uma operação em Moçambique a pedido de Gilberto Aparecido Santos, vulgo ‘Fuminho’, integrante da alta cúpula da facção criminosa PCC. Esta oferta teria acontecido inclusive na presença do cônsul honorário de Moçambique, Deusdete Januário Gonçalves, também investigado neste procedimento.” A coluna não conseguiu localizar Gonçalves.
Fuminho havia sido preso em 13 de abril de 2020 em um hotel de Maputo por agentes americanos da Drug Enforcement Administration, a DEA. O PCC e seus parceiros italianos e da máfia do Bálcãs planejaram resgatá-lo em Moçambique. Braço-direito no tráfico internacional de drogas do líder do PCC, Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, Fuminho estabelecera uma rede de tráfico a partir da Bolívia e do Brasil que enviava drogas para a África, Europa e EUA. O Brasil queria sua extradição. E a obteve.
O delator Oliveira contou que era o responsável por montar o emaranhado de negócios para a lavagem do dinheiro do tráfico internacional de drogas. Fechou então um acordo de colaboração premiada com a 23.ª Vara Federal de Curitiba. Confirmou dados obtidos em outras operações da PF, como a Retis, a Apocalipse, a Virus Alba e a The Wall.

Os mafiosos Nicola Assisi e seu filho Patrick Assisi, presos pela PF em São Paulo, eles cumprem pena no sistema de presídios federal do Brasil: ligação da ‘Ndrangheta com o PCC – Foto: Polícia Federal
Por meio da análise de dados bancários das empresas de fachada montadas pelo delator foi possível detectar operações com cifras milionárias com empresas de Agati. Oliveira entregou cópias de conversas de WhatsApp e de notas fiscais para demonstrar o que dizia. Mas ele sabia mais.
O delator contara ainda que a origem dos recursos de Agati era o tráfico internacional de drogas e suas relações com os narcotraficantes Nicola e Patrick Assisi, dois importantes brokers da ‘Ndrangheta, a máfia da Calábria, no Sul da Itália, que se tornou a mais importante organização criminosa transnacional europeia. Os Assisi haviam sido presos em 8 de julho de 2019, na Praia Grande (SP), onde moravam no mesmo prédio que o chefão do tráfico André de Oliveira Macedo, o André do Rap.
Mas, até então, seu testemunho sobre o tráfico era só a palavra de um colaborador que devia, portanto, ser corroborada por outros meios de prova. Foi aí que o delator revelou dois nomes que permitiram aos federais encontrar um banco de dados com mais de 3 bilhões de mensagens criptografadas das conversas mantidas por Agati com seus companheiros na cúpula do crime organizado.
Tratava-se dos codinomes Boxeador e Senna e dos PIN’s (Personal Identification Number) 5RGFM3 e BNYVNJ, usados por Agati no sistema de comunicação criptografada Sky ECC. As mensagens desse sistema decifradas na Operação Eureka permitiram ao Raggruppamento Operativo Speciale (ROS), dos Carabineiros italianos, encontrar as provas de sua utilização por mafiosos, traficantes servo-montenegrinos, terroristas paquistaneses e por outras de organizações criminosas ao redor do mundo, como o PCC.
No Brasil, a Sky ECC tinha um representante, a empresa Protectphone Importação e Exportação, que, segundo os federais, oferecia o serviço ao crime organizado e foi alvo da Operação Retis, em 24 de março de 2022. Um ano antes, nos EUA, o dono da Sky ECC foi processado por fornecer comunicação criptografada para narcotraficantes.
Com os codinomes de Agati, os federais procuraram a 23.ª Vara e obtiveram a autorização para formar com as autoridades italianas a primeira Equipe Conjunta de Investigações (ECI) do Brasil com a Itália para o compartilhamento, por meio do contato diretos das autoridades, de informações contidas no servidor da Sky ECC. E, assim, milhares de mensagens de Agati e de seus sócios foram parar nas mãos da PF.
Por meio delas, os policiais souberam que Agati montou uma organização em companhia do traficante do PCC Edmilson de Menezes, o Grilo, para controlar o porto de Paranaguá e enviar droga escondida em contêineres de navios que transportavam louças sanitárias e madeira para Valência, na Espanha. No Sky ECC, Grilo era o Sr. Madruga Pirikito.

Mensagens do sistema Sky ECC trocadas por traficantes que se identificam como Índigo, Teflon e Senna (Agati): grupo teria apenas 15 minutos para resgatar Fuminho em Moçambique – Foto: Reprodução/Estadão
Ele foi casado com a irmã de Roberto Soriano, o Tiriça, que integrou a cúpula do PCC até romper com Marcola, em 2024. E morreu atropelado em 8 de outubro de 2024, quando ia em romaria ao Santuário Nacional de Aparecida.
Entre as vítimas da vingança do PCC e dos italianos estava o guarda civil Jeferson Barcelos de Oliveira, morto em 6 de maio de 2020 por dois homens que saíram de HB20 e o fuzilaram dentro de um Onix, em Paranaguá. Os pistoleiros estavam cumprindo a sentença exposta por Grilo em uma das mensagens do Sky ECC: “Não vão viver para gastar o dinheiro que roubaram de nós”.
Barcelos era o encarregado da logística no porto, cuidando de contatos com funcionários do lugar para fazer a “contaminação” dos contêineres com a droga, por meio do chamado sistema rip on/rip off. No porto de Valência, representantes da empresa encarregada pela retirada dos contêineres e fiscais do aeroporto de Bruxelas também estariam envolvidos no esquema.
Os federais constataram que foi em abril de 2020, após o roubo do segundo carregamento de drogas – 500 quilos de cocaína, levados por bandidos vestidos como policiais federais –, que Agati teria mudado seu codinome no Sky ECC de Boxeador para Senna, conforme havia sido revelado pelo delator.
O navio que seria carregado com a droga roubada de Agati e Grilo, o MSC Naomi, foi palco de uma preensão de 994 quilos de cocaína feita pela Guardia di Finanza italiana no porto de Gioia Tauro, na Calábria, em 22 de dezembro. O navio saíra de Puerto Bolívar (Equador) e parou em Porto Rodman (Panamá), antes de seguir para a Itália com a droga num contêiner, em uma operação detectada na Operação Eureka.

Passageiros embarcam em um ônibus da TransUnião, no Terminal Itaquera, na zona leste de São Paulo; diretores da empresa são investigados sob a suspeita de estar ligados ao PCC – Foto: Estadão Contudo
Por fim, os federais encontraram na teia de relações de Agati até mesmo uma empresa denunciada na Operação Descarte, desdobramento da Lava Jato, deflagrada em março de 2018 com base nas delações do doleiro Alberto Youssef e do empresário Leonardo Meirelles. Após ter a prisão decretada em dezembro, Agati permaneceu foragido até janeiro, quando se entregou à polícia. Sua defesa tenta agora anular as provas obtidas pela PF. Quer mostrar que tudo o que ficou registrado sob os codinomes Boxeador e Senna não pode ser usado contra o acusado.
Esse é só o começo de uma batalha judicial que deve incluir ainda as provas de outra delação: a do mafioso Vincenzo Pasquino, outro narcobroker da ‘Ndrangheta. Preso no Brasil em 2022, ele foi extraditado para a Itália, onde firmou um acordo de colaboração com a procuradoria antimáfia, o que levou à criação de mais uma equipe conjunta de investigação que buscará entre as bilhões de mensagens do SKY ECC novas revelações sobre o ecossistema do crime organizado no Brasil e no mundo.
Agati e seus colegas demonstraram ali ter ciência da dimensão de suas atividades. E se vangloriavam disso. Em uma troca de mensagens, o usuário do Sky ECC identificado como Tony Stark comentou a decolagem de um avião do brasileiro com mais de uma tonelada de cocaína para a Bélgica. “A cena foi linda. Merece um seriado mexicano.” Ao que Agati respondeu: “Narcos 5 (série da Netflix). Vamos lançar. Coisa linda”.
Por Marcelo Godoy/Estadão