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Cultura

Europa

Mostra indígena Brasileira passa por Veneza e chega a Paris para ‘dialogar com olhar colonizador’

Em 2024, o público da prestigiosa Bienal de Artes de Veneza se deparou pela primeira vez em sua fachada principal com obras representativas de diversas etnias indígenas brasileiras. O feito é obra da força de um dos coletivos mais expressivos da arte indígena brasileira, o Mahku, sigla que resume o Movimento Artístico Huni Kuin. A exposição "Encontro de Almas" desembarca agora no Espaço Frans Karjcberg, em Paris.


O coletivo Mahku de artistas indígenas da etnia Huni Kuin “começou como uma pesquisa de seu fundador, o Ibã [Salles Huni Kuin], com os mais velhos [da tribo], com os cantos sagrados da ayahuasca”, conta a artista, pesquisadora e curadora indígena Kassia Borges Mytara.

“Ele fez uma pesquisa, um livro, mas ficou pensando como as pessoas não indígenas e os indígenas iriam entender o que era dito. E ele resolve isso chamando seu filho e solicitando que ele pintasse o que estivesse sendo dito ou cantado… Assim surgiu o Mahku [Movimento Artístico Huni Kuin]. São artistas da etnia que são aldeados, ou seja, moram no alto Rio Jordão, no Acre”, localiza Mytara.

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“A partir dos pontos dessa pesquisa que o Ibã fez, a gente traduz um som para imagem, e assim surgiram as pinturas do Mahku”, contextualiza.

Curadora da exposição cujas obras e artistas ilustraram a fachada principal da Bienal de Veneza em 2024, Kássia Borges Mytara também faz parte do coletivo, que traz instalações, pinturas, cerâmicas e cantos a Paris.

Representando as etnias do Brasil

Pintura de Kássia Borges Mytara, “Na Hene Waka”, de 2024, acrílico sobre tela, presente na exposição “Encontro de Almas”, em Paris – Foto: Rodrigo Braga

“A minha cerâmica é uma mistura de várias etnias, mas principalmente da karajás, que é a que eu faço parte junto com o Huni Kuin. Eu trago essa junção entre as etnias e é por isso que [a mostra] se chama “Encontro de Almas”, diz.

“Estamos representando as etnias do Brasil. Somos 300 etnias e 300 línguas indígenas. Então eu acho que esse encontro quer falar sobre a união faz a força” sublinha a artista e pesquisadora.

Estar na Bienal de Veneza é poder estar junto com quem nos colonizou, sem deixar de sermos quem somos

Natural de Goiânia, Mytara levou “para dentro da universidade o olhar indígena” ainda na década de 1980, um olhar que “não existia antes. “Minha dissertação de mestrado se chamava ‘Origem: um princípio a fundar’. Encontrei no [filósofo alemão] Walter Benjamin essa questão da origem como um turbilhão, uma mistura. Eu acho que trago para a cultura indígena esse olhar da academia, mas levo também o olhar indígena para dentro dessa mesma academia”, aponta.

Mytara contou como foi participar da Bienal de Veneza pela primeira vez: “posso dizer que foi o topo de um desejo. Acho que estar na Bienal de Veneza é poder conversar… Eu acho que a gente está conversando com o público, num lugar em que fomos negados por muitos anos. E aí quando a gente aparece na frente da bienal, no prédio da bienal, no prédio central, estamos nos apresentando, falando sobre isso, e dizendo ‘bom dia, seja bem-vindo a esse mundo’. Estar na bienal é poder estar junto com quem nos colonizou, sem deixar de sermos quem somos”, sublinha.

“Então essa bienal é muito importante para a arte indígena, para os brasileiros. Foi um ganho e foi, a meu ver, uma coragem muito forte, muito grande do Adriano Pedrosa, que foi o curador dessa bienal”, considera a artista. “Foi um gesto de coragem de trazer para o mundo quem somos. Não só a gente, mas todos que estamos representando, todo esse universo”, diz Kássia Borges Mytara.

“Ampliar o universo”

A artista e curadora explica como essa abordagem veio mudar o panorama da arte contemporãnea nos quatro cantos do planeta. “Eu acho que a arte indígena vem para ampliar o universo, porque não existe somente um ponto de vista. Não existe uma só verdade. Existem várias verdades e a gente precisava mostrar isso para esse universo que é bem europeu”, defende.

“E [era importante] mostrar uma outra estética, no sentido mais literal da palavra estética, que vem da estesia de sentir, de não ficar adormecido. Na verdade, a palavra estética, é sobre isso. É não deixar adormecer os sentidos, despertar os sentidos”, indica.

“A arte indígena contemporânea vem para preencher esses outros vazios, que às vezes nem sabem que são vazios. Ela vem mostrar outras possibilidades, outra estética que não é só essa que (a gente) está acostumado, porque é muito fácil você sempre ver as coisas sempre iguais. Aí quando você vê algo diferente, isso te toca. A estética é isso, e aí você percebe que existe outras possibilidades no mundo, outras possibilidades de ver o mundo, outras possibilidades de luta, né? Porque sim, é uma luta”, sublinha Mytara.

“Mulher Jibóia”, 2024, de Kássia Borges Mytara, instalação presente na exposição “Encontro de Almas”, em Paris – Foto: Maria Beatriz Barretto

E as temáticas que permeiam a exposição “Encontro de Almas” não poderiam ser mais atuais, como conta a curadora da mostra. “Estamos falando sobre o antirracismo, de todas essas coisas que estavam meio adormecidas, o feminicídio. A gente toca nisso. A arte indígena toca nisso. A arte indígena toca no sentido de mostrar para o mundo que existem outras possibilidades, outras estéticas, outras maneiras de ver e de sentir o mundo”, acredita.

Mytara ressalta os desafios ambientais que sublinham a necessidade de cura presente nas obras do coletivo indígena. “A cura para nós é muito importante, porque estamos num momento de muita necessidade disso para o mundo, para o meio ambiente. Aqui no Brasil a gente está sentindo uma massa de fumaça já tem um mês, que não dá para respirar direito, e isso tem a ver com o agrobusiness, com o agronegócio”, avalia.

“Eu acho que quando a gente traz esses cantos de cura é como se a gente tivesse falando que temos que fazer alguma coisa, nem que seja gritar por essa cura. Porque quando você olha uma pintura do Mahku ou uma cerâmica, você vai ver esse grito de socorro. Mas ao mesmo tempo a gente tem uma esperança, porque [as obras] são cheias de luz. A hora que você vê as pinturas, você percebe a luz. É muita luz que a gente traz, é o que a gente está precisando mesmo”, afirma.

O “susto” do colonizador

Kássia Borges Mytara fala sobre a reação do público europeu aos trabalhos em múltiplos suportes do coletivo Mahku. “Às vezes eu percebo que há um susto, eu percebo esse susto e percebo algo assim: ‘poxa, o que eu pensava que era arte, não é’. Existe essa ampliação [do olhar estrangeiro]. Eu percebo isso”, comenta a artista.

“Bom, eu acho que eles tentam fazer esses questionamentos lá dentro. Eu vi muita gente que gostou demais e ficou feliz de ver o painel [na fachada] da Bienal de Veneza, mas outros já se assustaram e quiseram rotular a arte indígena como primitiva, naïf. Essas pessoas olham o painel com olho de colonizador. Ele se assusta, mas existe a possibilidade também de chegar lá ‘nu’ e começar a pensar de outro jeito”, pondera Mytara.

A exposição “Encontro de Almas” fica em cartaz no Espaço Frans Krajcberg, em Paris, até o dia 20 de dezembro.

Com informações do RFI